Renato Zacarias Silva

Biólogo

Doutor em Oceanografia Biológica

Técnico Administrativo em Educação – Zoologia

Somos uma espécie muito intrigante. Segundo a Antropologia, nossos ancestrais proto-humanos conseguiram existir e evoluir para o que (e quem) somos hoje graças ao surgimento, aprimoramento e seleção de aspectos nobres como a linguagem e a empatia. Estas duas características permitiram aos proto-humanos que ambas se reforçassem mutuamente, através da troca de experiências, de tecnologias e do compartilhar de culturas pela socialização. Este cenário fortaleceu nossos proto-humanos como um grupo coeso de frágeis primatas humanoides (sem grandes avanços tecnológicos) diante de predadores com armas biológicas muito mais eficientes do que os nossos modestos dentes e unhas. Cuidar, zelar e respeitar uns aos outros como um coletivo, aparentemente, fez toda a diferença para chegarmos até aqui como espécie. Sem a empatia da ancestralidade Humana, estaríamos extintos há muitos milhares de anos.

Mas parece que algo se perdeu no percurso, desde os tempos proto-humanos, até a contemporaneidade.  O avançar da humanidade rumo a atual Sociedade do Conhecimento (ou Sociedade das Tecnologias da Informação) parece demonstrar que o Saber não faz evoluir civilizatória e civilizadamente.  Nosso acúmulo de saber e das dolorosas e deletérias vivências étnico-sociais (guerras) que tivemos (e temos) para as liberdades e direitos conquistados, histórica e cientificamente, se prestam muito bem no papel e (na prática) para poucos. Esta mesma sociedade vocifera aos ventos e aos quatro cantos do mundo sobre a importância da inclusão e da tolerância (nas suas diversas dimensões). Em contrapartida, o quadro geral desta sociedade do “conhecimento” mostra enorme regresso sobre os direitos sociais e humanos, que se refletem no aumento do racismo, da intolerância generalizada, da misoginia, do machismo e masculinismo e, consequentemente, da LGBTQIA+fobia. A empatia (importante agregador e protetor social) parece esmaecida, desbotada, anêmica na nossa sociedade. Temos avanços tecnológicos e científicos surpreendentes como, ir para a Lua, vasculhar a superfície de Marte, aprimorar a agricultura, investigar as profundezas dos oceanos, desenvolver medicamentos e vacinas… Tudo isto é lindo! Mas o panorama mostra que todas estas conquistas científicas não reforçaram os processos empáticos e civilizatórios da nossa espécie e que o tecido coeso social se desfaz diante de nossos olhos.

Mais além, a ciência mostra que a sustentabilidade do planeta depende de muitos fatores, tais como, do respeito à pluralidade e à diversidade individual e coletiva (étnica, racial, social, cultural), do direito à saúde, da erradicação da pobreza, do empoderamento feminino, dos direitos de existência e permanência, do respeito aos direitos humanos, da superação da injustiça social, da dimensão socioambiental em contraposição às relações de dominação e exploração, do respeito à diversidade sexual para o desenvolvimento da Cidadania Planetária. Nossa “sociedade do conhecimento” está pronta para aquilo diz serem as bases da sustentabilidade? Os tópicos discriminados apontam para um tênue verniz do discurso social inclusivo, mas que respinga com tons aberrantes, dolorosos, deletérios, antipáticos, violentos e antissustentáveis sobre a pluralidade e diversidades humanas, em especial sobre os LGBTQIA+. As atitudes segregacionistas, moduladoras, assediantes e antissustentabilidade que tentaram (e ainda tentam) homogeneizar os comportamentos das variáveis naturais da sexualidade Humana (em suas infinitas expressões) estão dentro do Espectro de Procusto, que representa a intolerância do ser humano sobre seu semelhante. Mas quem foi esta figura mitológica arquetípica? Procusto era um bandido que vivia numa floresta, na Serra de Elêusis. Ele possuía uma cama de ferro (que tinha o tamanho exato do seu corpo) e convidava, hospitaleiramente, os viajantes que passavam por perto da sua casa a se deitarem nela para descansar. Os hóspedes, se fossem maiores do que a cama eram, torturantemente, amputados nas proporções que sobravam e aqueles menores eram esticados até o tamanho da cama. Mas as vítimas nunca se ajustavam a cama dele. Ele tinha, secretamente, outras duas camas de tamanhos diferentes e as usava de acordo com suas necessidades de ajustar seus hóspedes aos seus moldes. Todavia, o herói ateniense Teseu (em sua última aventura) capturou Procusto e o submeteu ao seu próprio suplicio de ajuste as suas camas, por fim, cortando sua cabeça e pés.

Então, quando os LGBTQIA+ podem se deparar com Procusto em suas vidas? Em diversas atitudes e falas daqueles que estão perto, que fazem (ou não) parte de suas vidas em assédios constantes, mutiladores e humilhantes que depõem contra a liberdade identitária em seus pluralismos. Quem dentro dos LGBTQIA+ nunca passou por situações de (des)tratamento, como segue: Você poderia ser mais discreto… É desnecessário vocês demonstrarem afeto em público… Nossa! Como você é afeminado!… Onde você comprou esta roupa não tinha para homem?… Enquanto viver sob o meu teto e comer da minha comida vai se comportar como eu quero!… Sabe porque você apanhou? Porque você dá muita pinta!… Aqui não é lugar para viado!… Meninas vestem rosa e meninos vestem azul… Estas verbalizações (e ações) são a pura manifestação do assédio moral constante contra os LGBTQIA+. Mas o verbo (a linguagem) representa a manifestação consciente de uma projeção atitudinal materializada e que coloca (ou tenta colocar) os LGBTQIA+ novamente nos guetos do passado, na marginalidade social, sob Procusto.  Como a sociedade “Procustonizadora” coloca os LGBTQIA+ nestes guetos? Por exemplo, negando seu acesso ao progresso de formação profissional quando um professor universitário não quer orientar um pós-graduando LGBTQIA+ pois ele não se encaixa no perfil de pessoa que o professor quer em sua equipe; dificultando o acesso dos LGBTQIA+ a uma vaga de concurso público para docente universitário quando a banca de avaliação, antieticamente, lhe dá notas (nas Provas e Títulos) inferiores àquela dos candidatos heterossexuais menos qualificados; quando se quebra uma lâmpada fluorescente no rosto de um cidadão LGBTQIA+ enquanto ele passeia por uma avenida negando seu direito de ir e vir (e existir); negando seus Princípios e Objetivos da Sustentabilidade quanto à Diversidade de Gênero e de Identidade Sexual.

E quem pode representar o Teseu nestes contextos? As Políticas Públicas. A priori, o ideal é ter em mente este Teseu como não-Taliônico (fora do contexto “olho por olho, dente por dente”). As políticas públicas não estão (ou são) para amputar ou esticar a sociedade não-LGBTQIA+ para os moldes de uma cama de ferro LGBTQIA+.  Na esfera pública, há exemplos importantes do reconhecimento dos direitos civis dos LGBTQIA+ para o resgate da dignidade, da cidadania e convivência, abrindo caminhos na educação (cotas para pessoas Trans no Ensino Superior), na saúde (Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais; Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde – SUS na modalidade ambulatorial e acolhimento),  civil (direito a adoção e ao casamento civil; pensão por morte de cônjuge homoafetivo; declaração de conjuge homoafetivo como dependente no plano de saúde e no imposto de renda), dentre outros. As políticas públicas existem para conscientizar e incentivar a tolerância, elucidando a sociedade que não há necessidade de moldar o outro de acordo com seu umbigo social. Isto porque tememos aquilo que não conhecemos. Quando conhecemos, não temos medo do infundado espelhamento do “diferente” do outro no meu ser, porque o “diferente” não é diferente, ele simplesmente é! Infelizmente, muitas vezes (ou na maioria delas) as políticas públicas têm que ser aplicadas como um Teseu Taliônico, fazendo valer os direitos LGBTQIA+ em batalhas judiciais, buscando atingir aquela máxima da nossa Constituição Cidadã de 1988: todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.