O dia 17 de maio foi declarado o Dia Internacional de Combate à Homofobia, vivenciado como uma data simbólica em que as pessoas de todo o mundo se mobilizam para falar de preconceito e discriminação sobre a perspectiva da equidade, da diversidade e da tolerância.

Abaixo publicamos o texto do Ativista, Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília, professor voluntário da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, autor do livro “A lucidez e o absurdo: conflitos entre o Poder Teológico-Político e os Direitos Humanos LGBT na Câmara dos Deputados”, publicado no Jornal Sindicato na Luta da APTAFURG, no mês de março de 2023.

Em guerra contra a desumanização: uma reflexão sobre as lutas LGBTI+ entre a violência e a ampliação da representatividade

Fredson Oliveira Carneiro[1]

O movimento de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Intersexo, e mais uma diversidade incontável de representações expressas na sigla LGBTI+[2], conquistou ao longo dos mais de 40 anos de sua existência um importante espaço na sociedade brasileira, especialmente quando consideramos o autoritarismo e o patriarcalismo inerentes à formação social do Brasil. Contra as relações espúrias de mando e obediência características do país de mais longevo regime escravocrata do mundo e de sistemáticos regimes ditatoriais, a população LGBTI+ foi capaz de existir ao longo dos séculos e de resistir às arbitrariedades que lhes foram impostas. Nesses processos históricos de existência e resistência contra as violências estruturais, essas populações criaram mecanismos de sobrevivência frente às desigualdades que interseccionavam suas vidas e conseguiram instituir novas formas de ação política e atuação democrática.

Com reivindicações organizadas que remontam à Constituinte de 1987, a pauta da ampliação da cidadania dessa parcela da população só ingressou efetivamente no debate jurídico-político pelas portas do Supremo Tribunal Federal (STF) nas primeiras décadas do século XXI. Não obstante os avanços alcançados, a efetiva cidadanização da população LGBTI+ continua um projeto inconcluso. Tal inconclusão deve-se não somente aos limites impostos ao reconhecimento dos direitos alcançados judicialmente, ainda não legislados, mas também à baixa representação política da população LGBTI+ nas instituições democráticas brasileiras.

Essa baixa representatividade nos espaços institucionais jurídicos e políticos tem entre os seus resultados a omissão legislativa em torno dos direitos LGBTI+ e a predominância da violência política de gênero e de raça contra as poucas representações dessa população no cenário institucional. Contribui para esta postura omissa a crescente representação de grupos conservadores eleitos para mandatos políticos, especialmente os que ostentam orientação religiosa de matriz neopentecostal. Essa desigual representação política evidencia a forma como as violências estruturais são mobilizadas por grupos hegemônicos, para inviabilizar o acesso e a incidência dos grupos socialmente precarizados na esfera pública.

A população LGBTI+ ainda possui uma cidadania precária no Brasil. Os dados das violências cometidas contra essa população continuam alarmantes e o nosso país, por 14 anos consecutivos, segue ocupando o primeiro lugar entre os países mais violentos para pessoas LGBTI+ no mundo. Segundo compilação feita pelo Trans Murder Monitoring (“Observatório de Assassinatos Trans”, em inglês), em 2021 houve um aumento de mais de 6% no número de assassinatos em relação ao ano anterior em todo o mundo. Desse total, 82% das mortes aconteceram na América Latina, 43% das quais no Brasil, onde os dados locais são colhidos e organizados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Apesar de ser considerada crime desde 2019 no Brasil, a transfobia resulta ainda mais dramática quando observamos que a expectativa de vida de pessoas transexuais é de apenas 35 anos, quando a média geral do país é de 77 anos.

Esses dados revelam um quadro dilemático da ausência de cidadania de pessoas que sofrem rejeição familiar, estão expostas à evasão escolar, à vulnerabilização econômica e a uma série de violências de matriz estrutural. Ademais, a população LGBTI+ está exposta à impunidade com os atos violentos que são praticados contra a sua dignidade e que são alimentados por discursos de ódio socialmente replicados e que, até recentemente, eram emanados pelos altos escalões da administração pública. A este respeito, não se pode olvidar que as políticas públicas voltadas à garantia de direitos das populações vulnerabilizadas não só foram descontinuadas nos anos de gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, como tiveram na pessoa da ministra Damares Alves, uma voraz detratora das lutas LGBTI+, a determinação para desarticular o aparato de proteção social existente no estado nacional.

Se ser cidadão ou cidadã, conforme conceitua a Constituição Federal de 1988, é ter a prerrogativa de poder exercer direitos políticos e cumprir deveres cívicos, podemos pensar com Erica Malunguinho que, no Brasil, as vidas LGBTI+ são existências inconstitucionais.  Isso porque, embora se exija o cumprimento dos deveres republicanos das pessoas LGBTI+, suas vidas são deixadas à margem do sistema político e da ordem democrática.

Entretanto, cientes de que não seremos democráticos enquanto parcelas de nossa população não estejam inseridas em nossa sociedade política, diversos membros do movimento LGBTI+ se organizaram para construir uma maior incidência política e para garantir uma participação efetiva nos processos decisórios. Deste modo, foi destacando o papel precursor de Kátia Tapety e Leci Brandão nesta seara, que Erica Malunguinho se elegeu como a primeira deputada estadual trans negra do Brasil. Em conjunto com ela, mandatas coletivas se organizaram e tiveram entre suas representantes Erika Hilton e Robeyoncé Lima, nas eleições de 2018.

Ao mesmo tempo em que seguia registrando os mais vergonhosos índices de violência global contra pessoas LGBTI+, o Brasil viu florescer uma geração de novas representações na política institucional, chegando às eleições de 2022 com o maior número de pessoas LGBTI+ eleitas em nossa história. Somando-se à história iniciada por Tapety e continuada, entre outros, por Jean Wyllys, Malunguinho e Hilton, novos nomes entraram em cena trazendo à esfera pública pautas inovadoras para a construção de uma nova sociedade. Capaz de garantir maior dignidade para todas, todos e todes (que agora define um novo pronome para a identificação de sujeitos políticos que tomam a cena em primeira pessoa), essa sociedade não será mais construída à revelia dessas vozes que agora se levantam.

Essas vozes representam histórias ainda não inscritas nos assentamentos dos poderes instituídos e corporificam as próprias existências inconstitucionais que reivindicam plena cidadania. Elas trazem ecos de vidas ainda não respeitadas em sua integralidade, em suas cores, regionalidades, em suas necessidades e em suas potencialidades. Agora, a diversidade começa a tomar assento nas arenas decisórias e passa a levar o aprendizado das lutas sociais para os salões dos poderes jurídico-políticos com vistas à construção de uma paisagem social mais inclusiva, em que as existências inconstitucionais possam se transformar em vidas constitucionalizadas. 

Nesse sentido, com o objetivo de ampliar a articulação entre essas novas representações e de debater os desafios da população LGBTI+ no Brasil contemporâneo, os parlamentares eleitos para a Câmara dos Deputados e também para algumas Assembleias Legislativas dos Estados se reuniram no “1º Encontro de LGBT+ eleites”, realizado nos dias 20 e 21 de janeiro de 2023, em Brasília. O encontro histórico, que antecedeu o Dia Nacional da Visibilidade Trans, comemorado em 29 de janeiro, foi palco tanto para a discussão sobre a violência contra as pessoas LGBTI+ quanto para o compartilhamento de estratégias para a reestruturação das políticas públicas voltadas à proteção dessas pessoas.

Não será preciso envidar muitos esforços para compreender que são complexos os desafios impostos a esses representantes, especialmente em razão da grande concentração de representantes da extrema direita no Poder Legislativo, intencionada a inviabilizar as pautas de defesa dos direitos da população LBGTI+. No entanto, apesar das vozes retrógradas dos conservadores, há um grande ímpeto coletivo em provocar as discussões junto à sociedade e ao novo governo, para que seja possível avançar em pautas de garantia da dignidade, dos direitos e da cidadania da população LGBTI+.

Afinal, como já aprendemos com os movimentos sociais ao longo de tantos anos de sua militância política, por mais difícil que seja viver em guerra contra a desumanização, não há outro caminho que não seja o de seguirmos juntes e em luta, porque sem comunidade e sem plena cidadania, não há democracia e tampouco libertação.